Caio Fernando Abreu

"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que sobra de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro." Caio Fernando Abreu

25 fevereiro 2009

O Arco


Que quer o anjo? chamá-la.
Que quer a alma? perder-se.
Perder-se em rudes guianas
para jamais encontrar-se.

Que quer a voz? encantá-lo.
Que quer o ouvido? embeber-se
de gritos blasfematórios
até quedar aturdido.

Que quer a nuvem? raptá-lo.
Que quer o corpo? solver-se,
delir memória de vida
e quanto seja memória.

Que quer a paixão? detê-lo.
Que quer o peito? fechar-se
contra os poderes do mundo
para na treva fundir-se.

Que quer a canção? erguer-se
em arco sobre os abismos.
Que quer o homem? salvar-se,
ao prêmio de uma canção.

Tristeza no céu

No céu também há uma hora melancólica.
Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.
Por que fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.
Os anjos olham-no com reprovação,
e plumas caem.

Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor
caem, são plumas.
Outra pluma, o céu se desfaz.
Tão manso, nenhum fragor denuncia
o momento entre tudo e nada,
ou seja, a tristeza de Deus.

22 fevereiro 2009

No meio do caminho




No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
destribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

(Antologia poética)

Rosas e Lírios...

(...) A mulher que chora baixinho
Entre ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.

Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltibancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me às mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palácios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também... (...)
(Poemas de Álvaro de Campos)

21 fevereiro 2009

Soneto do pássaro

Batem as asas? Rosa aberta, a saia
esculpe, no seu giro, o corpo leve.
Entre músculos suaves, uma alfaia,
selada, tremeluz à vista breve.

O que, mal percebido, se descreve
em termos de pelúcia ou de cambraia
o que é fogo sutil, soprado em neve,
curva de coxa atlântica na praia,

vira mulher ou pássaro? No rosto,
essa mesma expressão aérea ou grave,
esse indeciso traço de sol-posto,

de fuga, que há no bico de uma ave.
O mais é jeito humano ou desumano,
conforme a inclinação de meu engano.

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou-se com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Lembrança do Mundo Antigo

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos, estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

Natureza



Em suma: 
a contemplação da natureza propicia-nos 
um gosto antecipado da graça celeste, 
uma alegria constante para a alma e 
o princípio de sua completa renovação 
– nela reside o ponto mais alto da felicidade humana.   
(Lineu - 1748)

As boazinhas que me perdoem

– Qual é o elogio que toda mulher adora receber? Bom, se você está com tempo, pode-se listar aqui uns 700: mulher adora que verbalizem seus atributos, sejam eles físicos ou morais. Diga que ela é uma mulher inteligente e ela irá com a sua cara. Diga que ela tem um ótimo caráter, além de um corpo que é uma provocação, e ela decorará o seu número. Fale do seu olhar, da sua pele, do seu sorriso, da sua presença de espírito, da sua aura de mistério, de como ela tem classe: ela achará você muito observador e lhe dará uma cópia da chave de casa. Mas não pense que o jogo está ganho: manter-se no cargo vai depender da sua perspicácia para encontrar novas qualidades nessa mulher poderosa, absoluta. Diga que ela cozinha melhor que a sua mãe, que ela tem uma voz que faz você pensar obscenidades, que ela é um avião no mundo dos negócios. Fale sobre sua competência, seu senso de oportunidade, seu bom gosto musical. Agora, quer ver o mundo cair? Diga que ela é muito boazinha.
Descreva aí uma mulher boazinha. Voz fina, roupas pastéis, calçados rentes ao chão. Aceita encomendas de doces, contribui para a igreja, cuida dos sobrinhos nos finais de semana. Disponível, serena, previsível, nunca foi vista negando um favor. Nunca teve um chilique. Nunca colocou os pés num show de rock. É queridinha. Pequeninha. Educadinha. Enfim, uma mulher boazinha.
Fomos boazinhas por séculos. Engolíamos tudo e fingíamos não ver nada, ceguinhas. Vivíamos no nosso mundinho, rodeadas de panelinhas e nenezinhos.  A vida feminina era esse frege: bordados, paredes brancas, crucifixo em cima da cama, tudo certinho. Passamos um tempão assim, comportadinhas, enquanto íamos alimentando um desejo incontrolável de virar a mesa. Quietinhas, mas inquietas.
Até que chegou o dia em que deixamos de ser as coitadinhas. Ninguém mais fala em namoradinhas do Brasil: somos atrizes, estrelas, profissionais. Adolescentes não são mais brotinhos: são garotas da geração teen. Ser chamada de patricinha é ofensa mortal. Pitchulinha é coisa de retardada. Quem gosta de diminutivos, definha.
Ser boazinha não tem nada a ver com ser generosa. Ser boa é bom, ser boazinha é péssimo. As boazinhas não têm defeitos. Não têm atitude. Conformam-se com a coadjuvância. Ph neutro. Ser chamada de boazinha, mesmo com a melhor das intenções, é o pior dos desaforos.
Mulheres bacanas, complicadas, batalhadoras, persistentes, ciumentas, apressadas, é isso que somos hoje. Merecemos adjetivos velozes, produtivos, enigmáticos. As inhas não moram mais aqui. Foram para o espaço, sozinhas. (Ago de 1997)

Não estou pensando...

Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o Verão quente do dia,
Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida ...
Não estou pensando em nada.
É como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,

Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada ...  (06.07.1935)
(Poema de Álvaro de Campos)

20 fevereiro 2009

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente.
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte e por humidade nas paredes e cabelos brancos dos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio e uma partida apitada
De dentro de minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrumes de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há dois malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas –,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamos-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê –,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz:
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira.
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves, e o universo
Reconstrui-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu. (15.01.1928)
(Poemas de Álvaro de Campos – Obra poética IV)

* Publicado na revista Presença, n.39, julho, 1933. O poema chegou a ser intitulado "Marcha da derrota". É o poema que melhor mostra a última fase de Campos, a da melancolia, da margura, da desilusão e do pessimismo. Observa-se a atuação das duas realidades: a externa (real), quando ele olha pela janela, e a interna (própria da interioridade do poeta).

16 fevereiro 2009

Diário da Sombra

Lembra-te ainda de mim?
Tu conheceste-me há muito tempo...
Eu era aquela criança triste de quem tu não gostavas,
E por quem depois, pouco a pouco, te foste interessando
(Pela angústia, e a tristeza, e mais qualquer cousa,)
E de quem tu acabaste por gostar, quase sem o saber!
Lembras-te? A criança triste que brincava na praia
Sozinha, longe dos outros, sossegadamente,
E de vez em quando lhes lançava um olhar triste mas sem pena...
Vejo que olhas para mim disfarçadamente de vez em quando...
Estás recordado? Queres ver se te recordas? bem sei...
Sem saber sentes ainda no meu rosto calmo e triste
A criança triste que brincava sempre longe dos outros
E de vez em quando olhava tristemente para eles, mas sem pena?
Sei que olhas, e que não compreendes qual a tristeza
Que me mostra triste...
Que não é pena, nem é saudade, nem desgosto, nem mágoa...
Ah, é a tristeza
Daquele a quem, no grande solo antenatal,
Deus daria o Segredo –
O segredo da vacuidade absoluta das cousas,
E da ilusão do mundo –
A tristeza irreparável
Daquele que sabe que nada serve nem vale,
Que o esforço é um absurdo desgaste,
Que a vida é um espaço vazio,
Porque a desilusão vem sempre através da ilusão
E parece que a Morte é o sentido da Vida...
É isto, mas não é só isto, que tu vês no meu rosto
E faz com que olhes para mim, de vez em quando, disfarçadamente
Há, além disto,
Aquele pasmo negro, aquele arrepio sombrio,
Que seria na alma
O ter havido um segredo de Deus
Dito no grande solo antenatal, quando a vida
Não raiava ainda ao longe,
E todo o Universo luminoso e complexo
Era ainda um destino inevitavelmente a cumprir.
Se isto não me define, nada me define
E isto não me define –
Por que o Segredo que Deus me disse não era só isso.
Amo essa cousa que é hoje estar do lado do irreal,
O fim que há nisso, o meu dever de compreender o incompreensível
O meu sentimento d'haver quem não se pode sentir,
O meu grande interesse de impedir na infância,
O domínio dos sonhos arquitetados na luz.
Sim, é isto que põe
Uma velhice anterior à minha infância na minha face
E no meu olhar uma angústia interior à minha alegria.
Olhas-me disfarçadamente, de vez em quando,
E não me compreendes,
E tornas a olhar, disfarçadamente e sempre...
Sem Deus não há vida nesta vida
E não poderás nunca compreender...
(Poema de Álvaro de Campos – 17.09.1916) 

La Gozadera

(...) A escritora e filósofa francesa Chantal Thomas certa vez disse que na sociedade moderna há muito lazer e pouco prazer. O fato de você estar passeando, nadando ou comendo não significa que está tendo prazer, talvez esteja apenas obedecendo as leis severas do "tempo livre". O que há de divertido em reservar uma mesa num restaurante da moda para daqui a três meses, em enfrentar filas intermináveis para ver uma exposição de um artista de que você nem sabe quem é, em comprar uma bolsa caríssima que logo será vendida a dez reais no camelô e em praticar a ginástica do momento para não ficar desatualizada? Tudo isso são situações culturais, imposições de fora. O prazer está na invenção da própria alegria. (...) (trecho de texto)

15 fevereiro 2009

Magnificat

Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que  despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!
(Poema de Álvaro de Campos)

Canção à inglesa

Cortei relações com o sol e as estrelas, pus ponto no mundo.
Levei a mochila dos ardis que sei para o lado e pro fundo.
Fiz a viagem, comprei o inútil, achei o incerto,
E o meu coração é o mesmo que fui, um céu e um deserto.
Falhei no que fui, falhei no que quis, falhei no que soube.
Não tenho já alma que a luz me desperte ou a treva me roube,
Não sou senão náusea, não sou senão cisma, não sou senão    [ânsia,
Sinto em ânsia que fui a uma grande distância
E vou, só porque o meu ser é imundo e profundo,
Colado como um escarro a uma das rodas do mundo.
(Poemas de Álvaro de Campos – 01.12.1928)

A massacrante felicidade dos outros

Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco.

Há no ar um certo queixume sem razões muito claras. Converso com mulheres que estão entre os 40 e 50 anos, todas com profissão, marido, filhos, saúde, e ainda assim elas trazem dentro delas um não-sei-o-quê perturbador, algo que as incomoda, mesmo estando tudo bem. De onde vem isso?

Anos atrás, a cantora Marina Lima compôs com o seu irmão, o poeta Antonio Cícero, uma música que dizia: "Eu espero/ acontecimentos/ só que quando anoitece/ é festa no outro apartamento". Passei minha adolescência com esta sensação: a de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar para o qual eu não tinha convite. É uma das características da juventude: considerar-se deslocado e impedido de ser feliz como os outros são - ou aparentam ser. Só que chega uma hora em que é preciso deixar de ficar tão ligada na grama do vizinho.

As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação, que é infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias. Os notáveis alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas, então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na verdade a festa lá fora não está tão animada assim.

Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente. Só que os motivos pra se refugiar no escuro raramente são divulgados. Pra consumo externo, todos são belos, sexys, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores. "Nunca conheci quem tivesse levado porrada/todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo ". Fernando Pessoa também já se sentiu abafado pela perfeição alheia, e olha que na época em que ele escreveu estes versos não havia esta overdose de revistas que há hoje, vendendo um mundo de faz-de-conta.

Nesta era de exaltação de celebridades - reais e inventadas - fica difícil mesmo achar que a vida da gente tem graça. Mas tem. Paz interior, amigos leais, nossas músicas, livros, fantasias, desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na nossa biografia. Ou será que é tão divertido passar dois dias na Ilha de Caras fotografando junto a todos os produtos dos patrocinadores? Compensa passar a vida comendo alface para ter o corpo que a profissão de modelo exige? Será tão gratificante ter um paparazzo na sua cola cada vez que você sai de casa? Estarão mesmo todos realizando um milhão de coisas interessantes enquanto só você está sentada no sofá pintando as unhas do pé?

Favor não confundir uma vida sensacional com uma vida sensacionalista. As melhores festas acontecem dentro do nosso próprio apartamento.

Chove

Chove muito, chove excessivamente...
Chove e de vez em quando faz um vento frio...
Estou triste, como se eu fosse o dia...
Num dia no meu futuro em que chovia assim também
E eu, à janela, de repente me lembre do dia de hoje,
Pensarei eu "ah, nesse tempo eu era mais feliz"
Ou pensarei "ah, que tempo triste foi aquele"!
Ah, meu Deus, eu que pensarei deste dia nesse dia
E o que serei, e que farei; o que me será o passado que é hoje só presente?...
O ar está mais desagasalhado, mais frio, mais triste
E há uma grande dúvida de chumbo no meu coração...
(Poema de Álvaro de Campos – 20/11/1914)

14 fevereiro 2009

Ser...


Como eu desejaria ser parte da noite,
Parte sem contornos da noite, um lugar qualquer no espaço
Não propriamente um lugar, por não ter posição com contornos
Mas noite na noite, uma parte dela, pertencendo-lhe por todos os lados
E unido e afastado companheiro da minha ausência de existir 
(Poema de Álvaro de Campos - 13/12/1914)

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
E eu tantas vezes irrespondívelmente parasita,
Indesculpávelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cósmico às criadas do hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida ...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
(Poema de Álvaro de Campos)

Saudade

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais...

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

O Poço

Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profundezas da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.

Se cada dia cai


Se cada dia cai,
dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.
(Últimos Poemas)

Te amo

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

13 fevereiro 2009

Bem no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
(Paulo Leminski)

Testes

Dia desses resolvi fazer um teste proposto por um site da internet. O nome do teste era tentador: "O que Freud diria de você". Uau. Eu me interesso em saber até o que o vendedor de picolé pensa sobre mim, imagina Freud. Respondi corretamente a todas as perguntas e o resultado foi o seguinte: "Os acontecimentos da sua infância a marcaram até os doze anos, depois disso você buscou conhecimento intelectual para seu amadurecimento". Perfeito! Foi exatamente o que aconteceu comigo. Fiquei radiante: eu havia realizado uma consulta paranormal com o pai da psicanálise, e ele acertou na mosca.
Só que eu estava com tempo sobrando, e curiosidade é algo que não me falta, então resolvi voltar ao teste e responder tudo diferente do que havia respondido antes. Marquei umas alternativas esdrúxulas, que nada tinham a ver com minha personalidade. E fui conferir o resultado, que dizia o seguinte: "Os acontecimentos da sua infância a marcaram até os 12 anos, depois disso você buscou conhecimento intelectual para seu amadurecimento".
Muito engraçado.
De que adianta tanto "amadurecimento intelectual" se a gente se deixa empolgar por testezinhos muquiranas da internet? Desliguei o computador me sentindo a otária do século e fui fazer qualquer outra coisa para esquecer o pequeno incidente. Mas não esqueci. E, juntando um neurônio com o outro, me veio a luz. É isso! Não importa como vivi meus primeiros anos, quais foram as minhas reações diante do sucesso e do fracasso, quanto de carinho recebi ou não recebi de meus pais, se era popular ou se só colecionei frustações na escola. A verdade estava gritando na minha frente: os acontecimentos da infância marcam TODOS até os doze anos de idade (ou treze, ou quatorze) e depois disso TODOS buscam conhecimento intelectual para amadurecer.
Ou seja, o teste estava corretíssimo. As respostas podiam variar de pessoa para pessoa que pouco importava. A vida não é original, ela é repetitiva, e até Sartre, que não era psicanalista, matou a charada quando disse "não importa o que fizeram com você, importa é o que você fez do que fizeram com você". Em outras palavras: depois dos doze, chega de se lamentar. Vá buscar conhecimento para estruturar sua felicidade.
Ou os caras que bolaram o teste são mesmo um bando de gozadores ou são gênios. Tendo mais de doze anos de idade, escolha você o resultado que mais lhe convém.  (08 nov 2006)

12 fevereiro 2009

Anoitecer

É a hora em que o sino toca,
Mas aqui não há sinos;
Há somente buzinas,
Sirenes roucas, apitos
Aflitos, pungentes, trágicos,
Uivando escuro segredo;
Desta hora tenho medo.

É a hora em que o pássaro volta,
Mas de há muito não há pássaros;
Só multidões compactas
Escorrendo exaustas
Como óleo
Que impregna o lajedo;
Desta hora tenho medo.

É a hora do descanso,
Mas o descanso vem tarde,
O corpo não pede sono,
Depois de tanto rodar;
Pede paz - morte - mergulho
No poço mais ermo e quedo,
Desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza,
Agasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo ?
É antes a hora dos corvos,
Bicando em mim, meu passado,
Meu futuro, meu degredo;
Desta hora sim,tenho medo.

05 fevereiro 2009

E tudo mudou...

O rouge virou blush
O pó-de-arroz virou pó-compacto
O brilho virou gloss

O rímel virou máscara incolor
A Lycra virou stretch
Anabela virou plataforma
O corpete virou porta-seios
Que virou sutiã
Que virou lib
Que virou silicone

A peruca virou aplique, interlace, megahair, alongamento
A escova virou chapinha
'Problemas de moça' viraram TPM
Confete virou MM

A crise de nervos virou estresse
A chita virou viscose.
A purpurina virou gliter
A brilhantina virou mousse

Os halteres viraram bomba
A ergométrica virou spinning
A tanga virou fio dental
E o fio dental virou anti-séptico bucal

Ninguém mais vê...

Ping-Pong virou Babaloo
O a-la-carte virou self-service

A tristeza, depressão
O espaguete virou Miojo pronto
A paquera virou pegação
A gafieira virou dança de salão

O que era praça virou shopping
A areia virou ringue
A caneta virou teclado
O long play virou CD

A fita de vídeo é DVD
O CD já é MP3
É um filho onde éramos seis
O álbum de fotos agora é mostrado por email

O namoro agora é virtual
A cantada virou torpedo
E do 'não' não se tem medo
O break virou street

O samba, pagode
O carnaval de rua virou Sapucaí
O folclore brasileiro, halloween
O piano agora é teclado, também

O forró de sanfona ficou eletrônico
Fortificante não é mais Biotônico
Bicicleta virou Bis
Polícia e ladrão virou counter strike

Folhetins são novelas de TV
Fauna e flora a desaparecer
Lobato virou Paulo Coelho
Caetano virou um chato

Chico sumiu da FM e TV
Baby se converteu
RPM desapareceu
Elis ressuscitou em Maria Rita?
Gal virou fênix
Raul e Renato,
Cássia e Cazuza,
Lennon e Elvis,
Todos anjos
Agora só tocam lira...

A AIDS virou gripe
A bala antes encontrada agora é perdida
A violência está coisa maldita!
A maconha é calmante
O professor é agora o facilitador
As lições já não importam mais
A guerra superou a paz
E a sociedade ficou incapaz...

... De tudo.

Inclusive de notar essas diferenças

04 fevereiro 2009

A Mulher Banana

      A esta altura do campeonato, você já deve saber quem é a Mulher Melancia e a Mulher Jaca. São duas dançarinas de funk que ganharam notoriedade por possuírem quadris avantajados(respectivamente, 121 cm uma, 101 cm a outra). Essa é toda a história, com começo, meio e fim.
    Tem também a Mulher Rodízio, forma bem-humorada com que a Preta Gil se autobatizou, justificando que ela tem carne para todo mundo.
Pois agora vou apresentar pra vocês a grande novidade desse mercado tão nutritivo: a Mulher Banana.
     A Mulher Banana, se tivesse um quadril de 120 cm, correria três horas por dia numa esteira. Se isso não adiantasse, correria para uma mesa de cirurgia a fim de lipoaspirar uns cinco bifes de cada lado, pois ela acha que ter um bundão desmesurado é uma coisa meio vulgar. Faria isso por vaidade, pois acredita que, na prática, não faz a menor diferença para os homens se a mulher tem 90 cm ou 120 cm. Eu avisei que ela é banana.
    Essa questão da vulgaridade quase a deixa doente. Ela não se conforma que essa bobajada ganhe tanto espaço na imprensa, incentivando um monte de menininhas a também rebolarem no pátio da escola. Ela morre de vergonha ao ver a mãe da Mulher Melancia dizer para um repórter que sente muito orgulho de ter uma filha vitoriosa. Ela se pergunta: pelamordedeus, não existe ninguém para avisar essa gente que ter bunda não é um talento? A Mulher Banana é totalmente sem noção, coitada.
     A Mulher Banana não se dá conta de que há pouco assunto para muito espaço na mídia. Não há novidade que chegue para preencher tanto conteúdo de internet, tanta matéria de revista, tanto programa de tevê, e é por isso que qualquer bizarrice vira notícia. Sem falar que, hoje em dia, tudo é cultura de massa, tudo é pop, tudo é passível de análise para criarmos uma identidade nacional. Não, não, não pode ser!! Pode, Mulher Banana.
     A Mulher Banana, como o próprio nome diz, é ingênua, inocente, tolinha. Ela acredita que o discernimento nasceu para todos e que ser elegante vale mais do que ser ordinária. É boba, mesmo. Não no mercado das mulheres hortifrutigranjeiras, minha cara. Aliás, mercado ao qual você também pertence. Banana.
     A Mulher Banana ainda se choca com certas imagens, com certas fotos. Não que ela desacredite no que está bem diante do seu nariz (já sondei e não tem parentesco algum com a Velhinha de Tatuapé). Ela vê, ela sabe, ela está bem informada. Só que não consegue tirar isso pra piada, não leva na boa, não passa batido: ela é tão banana que se importa!!
    Aviso desde  já que a Mulher Banana não tem empresário, não posa para sites eróticos, não dá entrevistas e muito menos aceita sair de dentro de um bolo gigante usando apenas um tapa-sexo. Ela é banana. Vai morrer sem dinheiro, só é rica em potássio. E não pense que é movida à inveja. Se fosse, invejaria a bundinha da Gisele Bundchen, que também andou à mostra por esses dias e tem um tamanho bem razoável. A Mulher Banana, tadinha, ainda sonha com a valorização de um padrão estético razoável e de um comportamento social menos nanico. Não pode ser brasileira! Mas é, conheço-a como a mim mesma.      (20 abril de 2008)

01 fevereiro 2009

Convite

Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou mistério

A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos a sério.
(em Releituras)

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