Caio Fernando Abreu

"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que sobra de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro." Caio Fernando Abreu

10 maio 2009

vida doméstica

Adoro massas cinzentas, detesto cor-de-rosa. Penso como homem, mas sinto como mulher. Não me considero vítima de nada. Sou autoritária, teimosa e um verdadeiro desastre na cozinha. Peça para eu arrumar uma cama e estrague meu dia. Vida doméstica é para os gatos.

(trecho do livro 'Divã')

Casamento

Não casei com um namorado. Ele já era meu marido.A gente casou no primeiro dia em que nos vimos, pulamos a parte de reconhecimento, foi desde o início um salto sem rede. Estávamos predestinados, sabíamos disso antes mesmo de tocarmos um no outro. Mesmo quando houve brigas e implicâncias, elas faziam parte do querer-se. Não forjamos isso, aconteceu, e não se deve esnobar um presente do destino. Casamos porque já estávamos casados e não tinha cabimento fingir-se de solteiros.   (trecho do livro 'Divã')

Mães


Sei exatamente da normalidade da situação, do quanto todas as mães sentem, umas de forma mais intensa, outras de forma mais velada, a urgência de uma liberdade que sabemos irrecuperável. Trabalhamos, amamos, viajamos, vamos ao cinema, engordamos. Umas arquitetas, outras lavadeiras, umas obstetras, outras biscateiras, mas levamos gravado na testa, somos mães. Mulheres porém mães. Jovens porém mães. Solteiras porém mães. Eternamente mães.

(trecho do livro 'Divã')

Domingo

Duvido que haja algo mais entediante. É dia de descansar, de almoço em família, de ir ao parque: o domingo é benevolente demais. Não tem a malícia do sábado nem a determinação da segunda. É um dia em cima do muro, não é dia de festa nem de trabalho. Nem lá, nem cá. Nem mais, nem menos.

(trecho do livro 'Divã)

Estrada

Mas eu não me acostumo com esta transitoriedade, mudanças me parecem atraentes e ao mesmo tempo assustadoras. Meu rosto se transforma, meus pensamentos me deixam perplexas e eu me pego asfaltando uma nova estrada para mim, totalmente desfalcada de sinalização, não encontro mais placas de PARE nos cruzamentos.

(trecho do livro 'Divã')

Divã

Quem pode explicar o que me acontece dentro? Eu tenho que responder às minhas próprias perguntas. E tenho que ser serena para aplacar minha própria demência. E tenho que ser discreta para me receber em confiança. E tenho que ser lógica para entender minha própria confusão. Ser ao mesmo tempo o veneno e o antídoto.
A liberdade é atraente quando existe como promessa, mas nos enlouquece quando se cumpre.
Somos todos prisioneiros das nossas escolhas, por mais voluntárias que elas tenham sido.
Mãe é sempre um escudo.
Não importa a idade que temos, há sempre um momento em que é preciso chamar um adulto.
Vivo cercada de pessoas, mas nunca somos nós mesmos na presença de testemunhas.
(trechos do livro 'Divã')

Egoísta

Egoísta. Guardo para mim as palavras que não me atrevi a pronunciar, os planos descartados e os fetos de mim mesma me abortei. Poupei os outros do meu lado mais cruel e impactante, o meu lado mais insano e fascinante. Tenho tudo o que quis, tenho mais do que planejei, e mesmo assim – egoísta! – mal vejo a hora de recomeçar. Não sei se nasci para desempenhar o papel que me foi reservado. Tenho um bom currículo e alguns bens, mas o que é mais meu, minha maior propriedade, nunca foi declarada, minha loucura ninguém sabe onde mora, minha fé nem eu mesma sei onde se esconde.

(trecho do livro 'Divã')

praia de cartão postal



Não gosto de nada que é raso, de água pela canela. Ou eu mergulho até encontrar o reino submerso de Atlântida, ou fico à margem, espiando de fora. Não consigo gostar mais ou menos das pessoas, e não quero essa condescendência comigo também. Pareço transparente e azul, mas é tudo anilina, sou uma praia de cartão postal.

(trecho do livro 'Divã')

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