Caio Fernando Abreu

"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que sobra de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro." Caio Fernando Abreu

07 dezembro 2008

Cartas

Olá, coisa ruim, coisa péssima, o assunto é contigo – e comigo. Não dizem que a gente deve exorcizar nossos demônios? Não sei como se faz isso, então resolvi escrever, que é sempre um método. Você aí – na verdade, aqui: escondido em mim, calado, canastrão. No fundo você se diverte, adora me ver atrapalhada. "Hoje ela se entrega, hoje ela cai." Você vai me tentar até o final, mas não entro no seu esquema, não vou ceder.
Por que você não se instala em outro corpo, em outra mente, que tal vazar, me esvaziar, se escafeder? Eu já acreditei, um dia, que você era um inquilino necessário, o tal do contraponto, um equilíbrio, algo que todo mundo traz dentro, alimenta e blablablá. Mas estou cansada. Esgotada mesmo. Não consigo mais negociar com você. Esta é uma carta de demissão. Tô te demitindo, te expulsando, porque você é quem tem que sair, eu não posso sair de mim mesma.
Foi por pouco ontem. Tem sido por pouco todos os dias. Semana passada, quando eu peguei a estrada e fui dirigindo até aquela cidadezinha para dar uma palestra da universidade, pensei que não iria conseguir voltar. Me veio a idéia bem clara: daqui eu sigo em frente, não retorno mais, o dinheiro que tenho me basta para pagar umas poucas diárias e a gasolina, depois arranjo um emprego em qualquer buraco e começo outra vida, que nem nos filmes. Pinto o cabelo, troco de nome, ninguém me acha. Claro que eles iriam me procurar, porque eu posso não ser a melhor mãe do mundo mas eles não têm outra.
E com o pivete aquele, a mesma coisa. Eu podia ter subido na carona daquela moto, eu bem que quis. Um guri bonitinho, sem camisa, de corpo bom, me secando na fila do banco como se eu fosse uma biscate, me esperando na saída, quer que eu te leve para algum lugar? Eu queria, viu. Eu queria ir com ele feito uma pizza, naquela moto enferrujada, com aquele guri sem camisa. O que de mau poderia me acontecer? Levar uma bofetadas na cara, ser comida por três no meio do mato, o cara me roubar o relógio. Mas poderia ter sido também uma tarde doce. A gente nunca sabe o que perdeu. Voltei para casa com a integridade de sempre e, pra variar, nenhuma surpresa me aguardava.
Ontem eu pensei que ia surtar. Tudo começou com aquela voz metálica da vizinha falando com o zelador através da janela do terceiro andar. Amanhê tenho que passar roupa. Amanhê. E continuava: eu sempre passo na terça-feira, às vez na quarta. Às vez. E não era só o fato de ela falar desse jeito medonho, era também o fato de ela passar roupa toda terça-feira, como se fosse uma missa, tem que ser aquele dia, naquela hora, em nenhuma outra: uma mulher programada para passar roupa na terça. Claro que não tenho nada a ver com isso, mas foi me dando uma irritação, fui pensando na minha vida e me lembrei que vou ao supermercado toda segunda, e faço a unha toda terça, e toda quarta-feira minha sogra almoça conosco, e me deu uma raiva desses compromissos que a gente inventa para se sentir com os pés no chão e para evitar sair por aí fazendo besteira, então eu pensei: vou fazer besteira, vou fazer. Tive vontade de quebrar a casa toda. Derrubar os enfeites da cristaleira, quebrar tudo que fosse de vidro, jogar cadeiras pela janela, só pelo prazer do estrondo, mas antes que eu iniciasse minha carreira de vândala comecei a chorar, e foi um choro tão sentido que você até riu de mim, pensou "hoje ela se entrega, hoje ela cai", mas eu não caí, e meia hora depois estava dobrando as roupas das crianças que estavam esparramadas pelo chão.
Você é forte, demônio. Eu também sou. Mas rogo por trégua, jogo a toalha, te peço de joelhos: tome um chá de sumiço, vá dar uma volta, aportar em outra alma, que esta minha já esta gasta e não vê graça alguma nas suas provocações. Quero que você me deixe, porque simpatizo cada vez mais com você.
Leila

Resposta 
Oi, Leilinha,
que imagem feia você tem de mim, minha flor. Todos possuem seu próprio demônio, eu sou o seu. Aliás, eu sou você. Não poderia fazer parte da sua vida como um intruso, você me acolheu ao nascer, somos feitos da mesma matéria. Vai querer me expulsar no bem-bom, justo agora que você é uma mulher adulta? Pense bem, sua vida ficaria um tédio sem mim. Eu sou o que te faz levantar da cama todos os dias, boba. E o que te faria deitar em tantas outras, se você não fosse tão resistente aos meus apelos.
Que vulnerável que você está, meu bem. Sofrendo por bobagem. Como se eu fosse seu inimigo. Eu sou a única coisa viva que você tem. Não fosse eu, você seria uma boazinha, uma fofa – pode coisa pior?
Algumas pessoas até conseguem me abafar, mas usam métodos mais eficientes do que este seu de pedir – pedir, santa ingenuidade! – para eu ir embora. Você não reza, pra começar. Se quisesse mesmo que eu desaparecesse, você rezaria, mas não reza, graças a Deus. Não suporto essa gente que junta as mãos, fecha os olhos, abaixa a cabeça e fica falando baixinho, miudinho, num cochicho irritante. Elas se matariam em troca de um pecado, quem lhes dera um erro em suas vidas. Inventam que tudo é coisa do demo – coisa minha – para terem do que se orgulhar aos domingos. "Pequei, padre!" Devem achar isso excitante. Que pobreza.
Dessas eu me afasto mesmo, não suporto falsidade. Mas você não reza, princesa, então tem salvação. Você apenas pede, numa cartinha singela, que eu a deixe em paz. Só faltou escrever "vade-retro". Mas não escreveu, não cometeu esse deslize abominável. Você me quer, amada. Você me deseja ardentemente. Você adoraria que eu tomasse conta de você. Pelo menos foi isso que eu entendi naquela sua última frase. Simpatiza comigo? Ora, você me ama. O que demonstra que tem Q.I. razoável. Vamos namorar?
Agora que você está mais mansinha, vamos deixar de viadagem e ir ao que interessa. Ao que te interessa. Se quiser que eu tome posse, eu tomo. Te ajudo a quebrar os enfeites da casa, a pegar estradas e não voltar, a se deixar seduzir por trombadinhas. Qualquer problema, você joga a culpa em mim, eu seguro a onda.
Mas há maneiras de fazer isso sem tanto estardalhaço. E sem tanto medo. Vem cá, bonitinha, se aproxime.
Há quanto tempo você não se sente mulher? Mulher e demônio são uma coisa só, você sabe. Deixa eu ver este rostinho. Nossa, quanta melancolia neste olhar. Você está perdendo as forças de tanto resistir a mim. E eu nem sou tão malvado assim, garota. Meu papel é apenas de estimular sua liberdade, porque não é possível alguém ser escravo do bom comportamento o tempo todo. Pense bem: você tem a mania irritante de atender a todos os telefonemas, todos. Não atenda. Deixe tocar de vez em quando, não interrompa o que estiver fazendo, mesmo que esteja deitada no sofá olhando pro teto. Não dê atenção ao chato que está chamando. E se você esqueceu do aniversário da sua irmã, esqueceu, ora. Sem drama. Não caia no papo chantagista dela, todo mundo tem o direito de esquecer algumas datas, mande ela pentear macaco. E quando não estiver com vontade de dizer a verdade, minta. Quer trocar uma tarde de trabalho por um banho de piscina, o que te impede? E se quer ter sexo com alguém diferente, a mesma pergunta: o que te impede? Sou seu avalista, meu bem.
E pode exagerar na conta. Tenho certeza de que suas fantasias são mais radicais do que estas bobagens que eu propus. Você é muito mais imaginativa do que eu, todas vocês são. Quer sumir por alguns dias? É só deixar um bilhete, sumirei por alguns dias, tem carne congelada na geladeira. Isto da carne congelada vai amenizar o golpe. Tudo o que uma família precisa é ser alimentada. Não vão dar pelo seu desaparecimento. Puf. Mamãe evaporou.
Enxugue essas lágrimas inúteis, levante este queixo e vá tratar da vida. Faça tudo o que deseja fazer. Você acha que depois de morta vai ganhar um bônus? Uma prorrogação para tentar sair desse empate? Esqueça o empate. Vença. Perca. Ofereça a si mesma algum resultado.
É você mesma quem assina. E eu.
(cartas do livro 'Tudo que eu queria te dizer')

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