Caio Fernando Abreu

"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que sobra de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro." Caio Fernando Abreu

22 janeiro 2009

Onde é que eu ia mesmo?

Uma vez escrevi uma crônica que se chamava "Coisa com coisa". Era sobre a minha vexamosa tendência de trocar o nome das pessoas. Não apenas nomes de pessoas que mal conheço, mas também nomes de parentes. Parentes próximos, como filhos. Com o tempo, comecei a trocar também nomes de objetos, a me embaralhar com verbos e a perder palavras que estavam na ponta da língua. Ou seja, passei a não dizer mais coisa com coisa.
Pois tenho novidades: piorei muito.
Às vezes estou no meu quarto e penso: vou na sala buscar meus óculos. Quando estou no corredor, já esqueci o que ia fazer na sala. Quando chego na sala, olho em volta e tento descobrir o que fui fazer ali. Não recordo. Fico feito uma barata tonta: "O que era mesmo?" Volto pro quarto de ré, pra ver se a memória é resgatada no rewind, feito fita rebobinada, mas não adianta. Dali a dois minutos, lembro: "Ah, eu ia pegar os óculos! Onde mesmo?"
Tenho comentado isso com alguns amigos, na esperança de que me olhem com piedade e me recomendem um bom médico, mas o que mais escuto é: "Comigo tem sido a mesma coisa". Pesquisei com conhecidos dos dezenove aos noventa anos. Com todos tem sido assim. Alzheimer geral. Tem alguma coisa errada, e não é só comigo.
Li recentemente uma matéria que associa a falta de memória com a falta de sono. É uma teoria. Os especialistas entrevistados para a matéria recomendam que a gente não abra mão de dormir oito horas seguidas. Dizem que isso não é balela, que ajuda mesmo o cérebro a descansar e a retomar as tarefas do dia seguinte com funcionamento pleno. Maravilha. Oito horas de sono. Me explique como.
Eu apago a luz cedo. Antes da meia-noite. Às vezes às dez e meia. Tenho perdido o Saia Justa por causa disso. O Manhattan Connection. A minissérie Queridos Amigos. Meu sono está me emburrecendo, mas, quando os olhos pesam, não há outra saída a não ser capitular. Desligo o abajur e apago junto. Só que às quatro da matina minha cabeça acorda sozinha! A cabeça, essa maldita. Ela então faz um apanhado geral dos problemas a serem resolvidos no dia seguinte.Na verdade, nem problemas são, mas durante a madrugada qualquer unha encravada vira um câncer terminal. Sabe como é, a noite potencializa o drama. Então fico eu ali fritando nos lençóis, pensando, pensando. Verbo desgraçado: pensar.
Quando consigo pegar no sono de novo, o despertador faz o seu serviço: me desperta. Cedíssimo: hora de levar os filhos (o nome deles, mesmo?) ao colégio. Há quem tenha  reunião no escritório. Outros massagens. Outros precisam ir para a parada de ônibus. Quem consegue hoje em dia dormir oito horas de sono cravado? Os milionários, e nem eles, eu acho.
Tampouco tenho sonhado. Não há sono suficiente para criar uma historinha com começo, meio e fim. Freud teria dificuldade em trabalhar hoje em dia: dorme-se pouco. E lembra-se menos ainda. Fim de era para o descanso e a memória. Do que eu estava falando mesmo?
A solução é mudar a rotina. Ver menos televisão. Ter menos obrigações. Morar em lugares mais silenciosos. Ter menos vida noturna. Menos compromissos. Menos agenda. Menos e-mails. Menos contatos profissionais, mais amigos. Menos trabalho, mais férias. Menos filhos: é difícil decorar dois nomes. Filho único é mais fácil. E deixar de frescura e pendurar logo aquele troço medonho que prende as hastes dos óculos ao nosso pescoço. (texto do livro 'Doidas e Santas')

Comentários