Caio Fernando Abreu

"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que sobra de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro." Caio Fernando Abreu

23 novembro 2008

Contemplação

Não acuso. Nem perdôo.
Nada sei. De nada.
Contemplo.
Quando os homens apareceram,
eu não estava presente.
Eu não estava presente,
quando a terra se desprendeu do sol.
Eu não estava presente,
quando o sol apareceu no céu.
E antes de haver o céu,
Eu não estava presente.

Como hei de acusar ou perdoar?
Nada sei.
Contemplo.

Parece que às vezes me falam.
Mas também não tenho certeza.
Quem me deseja ouvir, nestas paragens
onde todos somos estrangeiros?

Também não sei com segurança, muitas vezes,
da oferta que vai comigo, e em que resulta,
pois o mundo é mágico!
Tocou-se o Lírio, e apareceu um Cavalo Selvagem.
E um anel no dedo pode fazer desabar da lua um temporal.

Já vês que me enterneço e me assusto,
entre as secretas maravilhas.
E não posso medir todos os ângulos do meu gesto.

Noites e noites, estudei devotamente
nossos mitos, e sua geometria.

Por mais que me procure, antes de tudo ser feito,
eu era amor. Só isso encontro.
Caminho, navego, vôo,
– sempre amor.
Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,
– mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase.

À beira dos teus olhos,
por acaso detendo-me,
que acontecimentos serão produzidos
em mim e em ti?

Não há resposta.
Sabem-se os nascimentos
quando já forem sofridos.

Tão pouco somos, – e tanto causamos,
com tão longos ecos!
Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecimentos vínculos.
Entre o desejo de itinerário, uma lei que nos leva
age invisível e abriga
mais que o itinerário e o desejo.

Que te direi, se me interrogas?
As nuvens falam?
Não. As nuvens tocam-se, passam, desmancham-se.
Às vezes, pensa-se que demoram, parece que estão paradas...
       Confundiram-se.

E até se julga que dentro delas andam estrelas e planetas.
Oh, aparência... Pode talvez andar um tonto pássaro perdido.
Voz sem pouso, no tempo surdo.

Não acuso nem perdôo.
Que faremos, errantes ente as invenções dos deuses?

Eu não estava presente, quando formaram
a voz tão frágil dos pássaros.

Quando as nuvens começaram a existir,
qual de nós estava presente?

Receita de Ano Novo-Introdução II

     João Brandão, que às vezes é modelo de sabedoria relativa (a absoluta consiste em deixar a fantasia agir), contou-me que todo ano recebe um cartão nesses termos: "CALMA, RAPAZ"
     "E quem é que te manda este cartão?", perguntei-lhe. "Eu mesmo. Entro na fila, compro o selo, boto na caixa. Porque se eu não fizer isto, ninguém o fará por mim. Ao receber a mensagem, considero-a mandada por amigo vigilante e discreto, e faço fé na recomendação, que eu não saberia me impor, diante do espelho." Pausa e continuação: "Tem me ajudado muito. Você já reparou que ninguém deseja calma a ninguém, na época de desejar coisas? Deseja-se prosperidade, paz, amor, isso e aquilo ('tudo de bom pra você'), mas todos se esquecem de desejar calma para saborear esse tudo de bom, se por milagre ele acontecer, e principalmente o nada de bom, que às vezes acontece em lugar dele. Como você está vendo, não chega a ser um voto que eu dirijo a mim próprio, pelo correio. É uma vacina."
     Vacinemo-nos, amigos.

Beira-mar

Sou moradora das areias,
de altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
como o sangue nas minhas veias,
como os peixinhos nos rios...
Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada,
vejo mundos e estou cega, 
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha...
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.

Deus te proteja, Cecília,
que tudo é mar — e mais nada.

Explicação

O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente:
guardo o resto para mais tarde.
Deus não fala comigo — e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce...
— espero a minha própria vinda.

(Navego pela memória
sem margens.

Alguém conta a minha história
e alguém mata os personagens.)

Comentários