O Ogre rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos, com esse exagerado ar de ferocidade que os monstros gostam de aparentar, por esporte.
Diante dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele. Chamava-se Malaquias – tão pequenino e reconchudo, pelado, a barriguinha pra baixo, na tocante posição de certos retratos da primeira infância...
O Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre. Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito... saiu voando janela em fora...
Dada, porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima, atrás dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a Mãe de Deus lhe vale!
Que o digam as nuvens, esses lerdos e desmesurados cágados das alturas, quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre elas, voando em esquadro, o pobre, de cabeça pra baixo.
E o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos filhos, o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no entrechocar das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!
E a mundana que pinta o seu rosto de ídolo... E o empregadinho em falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como cabelos de afogado... E o orador que pára em meio de uma frase... E o tenor que dá, de súbito, uma nota em falso... Todos escutam, no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!
E quantas vezes um de nós, ao levantar o copo ao lábio, interrompe o gesto e empalidece... – O Anjo! O Anjo Malaquias! – ... E então, pra disfarçar, a gente faz literatura... e diz aos amigos que foi apenas uma folha morta que se desprendeu... ou que um pneu estourou, longe... na estrela Aldebaran...
Caio Fernando Abreu
"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que sobra de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro." Caio Fernando Abreu
15 novembro 2008
Envelhecer
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
Epílogo
Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada aguenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cartas! Não se sabe... Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca... Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade.
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