Tu conheceste-me há muito tempo...
Eu era aquela criança triste de quem tu não gostavas,
E por quem depois, pouco a pouco, te foste interessando
(Pela angústia, e a tristeza, e mais qualquer cousa,)
E de quem tu acabaste por gostar, quase sem o saber!
Lembras-te? A criança triste que brincava na praia
Sozinha, longe dos outros, sossegadamente,
E de vez em quando lhes lançava um olhar triste mas sem pena...
Vejo que olhas para mim disfarçadamente de vez em quando...
Estás recordado? Queres ver se te recordas? bem sei...
Sem saber sentes ainda no meu rosto calmo e triste
A criança triste que brincava sempre longe dos outros
E de vez em quando olhava tristemente para eles, mas sem pena?
Sei que olhas, e que não compreendes qual a tristeza
Que me mostra triste...
Que não é pena, nem é saudade, nem desgosto, nem mágoa...
Ah, é a tristeza
Daquele a quem, no grande solo antenatal,
Deus daria o Segredo –
O segredo da vacuidade absoluta das cousas,
E da ilusão do mundo –
A tristeza irreparável
Daquele que sabe que nada serve nem vale,
Que o esforço é um absurdo desgaste,
Que a vida é um espaço vazio,
Porque a desilusão vem sempre através da ilusão
E parece que a Morte é o sentido da Vida...
É isto, mas não é só isto, que tu vês no meu rosto
E faz com que olhes para mim, de vez em quando, disfarçadamente
Há, além disto,
Aquele pasmo negro, aquele arrepio sombrio,
Que seria na alma
O ter havido um segredo de Deus
Dito no grande solo antenatal, quando a vida
Não raiava ainda ao longe,
E todo o Universo luminoso e complexo
Era ainda um destino inevitavelmente a cumprir.
Se isto não me define, nada me define
E isto não me define –
Por que o Segredo que Deus me disse não era só isso.
Amo essa cousa que é hoje estar do lado do irreal,
O fim que há nisso, o meu dever de compreender o incompreensível
O meu sentimento d'haver quem não se pode sentir,
O meu grande interesse de impedir na infância,
O domínio dos sonhos arquitetados na luz.
Sim, é isto que põe
Uma velhice anterior à minha infância na minha face
E no meu olhar uma angústia interior à minha alegria.
Olhas-me disfarçadamente, de vez em quando,
E não me compreendes,
E tornas a olhar, disfarçadamente e sempre...
Sem Deus não há vida nesta vida
E não poderás nunca compreender...
(Poema de Álvaro de Campos – 17.09.1916)
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